sábado, 23 de março de 2013

EVOLUÇÃO TIPOLÓGICA DA METALÚRGICA EBERLE: subsídios para projeto de refuncionalização

Ana Elísia da Costa
Professora Universidade de Caxias do Sul – RS – Brasil Doutoranda Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PROPAR ana_elisia_costa@hotmail.com
Terezinha Buchebuan
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - RS - Brasil terebuchebuan@hotmail.com

RESUMO

O artigo é uma investigação sobre tipologia industrial e têm como objeto de estudo os edifícios da Metalúrgica Eberle. Trata-se de um complexo fabril construído entre o fim do século XIX e a década de 1950, em Caxias do Sul, um importante centro industrial no sul do Brasil. O conjunto, tido como referência arquitetônica para a cidade, está há décadas abandonado e recentemente foi locado para a implantação de uma Universidade. Diante da proposta de refuncionalização, o estudo sobre a evolução cronológica e tipológica do complexo poderá subsidiar futuras propostas de intervenção. A abordagem se desenvolve cronologicamente, localizando a construção das fábricas e relacionando-as com similares do mesmo período, de modo a permitir a identificação de esquemas tipológicos recorrentes ou excepcionais. Inicialmente, destaca os primitivos edifícios em madeira e a substituição gradativa por edificações em tijolos. Ressalta o papel de vanguarda na arquitetura local do edifício novo junto à rua Os 18 do Forte, na década de 30. Apesar da composição volumétrica se relacionar com as soluções recorrentes no período, a predominância do vazio sobre o cheio e o emprego da estrutura modulada de concreto armado antecipam soluções só adotadas posteriormente. O edifício-ícone da empresa é construído nas décadas de 40 e 50, junto à rua Sinimbú. Trata-se de uma longa barra horizontal contraposta por uma torre simétrica, cuja linguagem Art Déco procura traduzir a “modernidade” da empresa. Pelo seu porte, localização e desempenho sócio-econômico, o edifício é um marco urbano de grande relevância. Isoladamente ou em conjunto e em diversos graus, as obras do complexo fabril criaram condições para o avanço da linguagem arquitetônica e da tecnologia construtiva no contexto da cidade. É o diagnóstico feito a partir deste estudo que permitirá definir critérios de substituição e permanência das partes que compõem o conjunto.

INTRODUÇÃO
A Metalúrgica Eberle nasceu em Caxias do Sul, uma cidade na região nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, marcada pelo processo de colonização italiana. Para essa região, entre agricultores, vieram também “colonos industriosos”, que se instalaram na área urbana da Colônia. Inicialmente, se dedicaram ao comércio, cujos lucros, gradativamente, impulsionaram as atividades industriais. Entre as indústrias mais expressivas, logo se destacaram a têxtil, a alimentícia e a metal-metalúrgica. No que se refere à consolidação da indústria metal-metalúrgica, há de se considerar o fato de que a região não dispõe de matéria-prima, nem em suas proximidades. Por sua vez, o acesso a esse material enfrentou inúmeras dificuldades de transporte, dada à região de relevo acidentado em que se encontra o município.
Neste contexto, destaca-se a Metalúrgica Eberle. Trata-se de um complexo fabril construído entre o fim do século XIX e a década de 1950, envolvendo sucessivas construções, substituições e consolidações, o que resultou em um complexo fragmentado e de difícil compreensão.
Por ocupar quase toda uma quadra ao lado da praça principal de Caxias do Sul e pelo seu papel social e econômico, a metalúrgica se transformou em um marco urbano ao longo da sua história. Especialmente a fábrica construída na década de 1940 merece menção, ao ser citada como a “mais moderna e mais ampla” ou “pequeno arranha-céu caxiense.” (Antunes, 1950, p. 240)
Contudo, há décadas o conjunto vem sofrendo com o abandono de seu uso original. Inúmeros são os problemas de deterioração, por falta de manutenção. E, mais recentemente, surgem ameaças de descaracterização, uma vez que o complexo vem absorvendo novos usos, como um estacionamento de veículos e uma Universidade.
Considera-se que a refuncionalização represente uma medida inevitável para garantir a sobrevivência física e simbólica do patrimônio. Contudo, por falta de clareza sobre as especificidades do complexo, intervenções pontuais podem vir a prejudicar o desempenho do conjunto, descaracterizando-o de modo irreversível.
Assim, este artigo tem por objetivo traçar uma evolução tipológica da Metalúrgica Eberle, na esperança de que tais dados possam subsidiar futuras propostas de intervenção. É o diagnóstico feito a partir deste estudo que permitirá definir critérios de substituição e permanência das partes que compõem o conjunto.
Para alcançar tais objetivos, as sucessivas construções, substituições e consolidações são abordadas cronologicamente. Três grandes períodos são identificados: (1) de 1884 a 1930, período de transição dos primitivos edifícios em madeira para as singelas edificações em alvenaria; (2) década de 1930, com o papel de vanguarda do edifício construído junto à rua Os 18 do Forte; (3) décadas de 1940 e 1950, com a construção do edifício-ícone da empresa.
Em cada um desses períodos é feita uma contextualização arquitetônica e urbanística, identificando esquemas tipológicos - formais, funcionais e tecnológicos - recorrentes1.
Na seqüência, são analisados os edifícios da Metalúrgica, o que permite, por comparação a similares, identificar o quanto são excepcionais ou recorrentes.

Por fim, é possível concluir que, isoladamente ou em conjunto e em diversos graus, as obras do complexo fabril da Eberle criaram condições para o avanço da linguagem arquitetônica e da tecnologia construtiva no contexto da cidade de Caxias do Sul.

Conforme método sugerido por Argan (1984)

Breve história empresarial
A Eberle teve início em 1884, como uma pequena funilaria de propriedade de Giuseppe e Luigia Eberle. Em 1896, Abramo Eberle, filho do casal, comprou a funilaria e passou a fabricar lamparinas, máquinas de sulfatar, alambiques, funis, canecas, baldes... (Franco e Ramos, 1946).
Com a ampliação do mercado interno decorrente da Primeira Guerra Mundial e com a inauguração da estrada de ferro, a década de 1910 representou um grande crescimento da empresa, passando a produzir, com seus 250 funcionários, artigos para montaria, talheres, objetos domésticos e sacros, rebites e botões. A Segunda Guerra e as dificuldades de importação de máquinas levaram a empresa a fabricar seus primeiros motores elétricos e a forjar peças de aço para diversas outras indústrias, sendo decretada empresa de interesse militar.
A partir daí, a empresa começou a implantar novos serviços, complementares às atividades principais, como tipografia e transporte rodoviário. Investiu em viagens internacionais de estudo de novas tecnologias e num setor de negócios, com a montagem de escritórios em São Paulo e Rio de Janeiro e confecção de catálogos de seus produtos. O intenso processo de desenvolvimento culmina na construção, em 1948, da segunda fábrica – a MAESA, na região leste da cidade.
Politicamente, a empresa mantém estreito relacionamento com a comunidade caxiense, participando e promovendo eventos locais. Com os operários, manteve relações de cunho paternalista nas áreas: financeira, fazendo empréstimos e organizando cooperativas; cultural, promovendo cursos e criando grêmio atlético e biblioteca; e saúde, oferece atendimento médico.
Na década de 1960, a Eberle se transforma em empresa de capital aberto e inicia a construção do seu terceiro parque – São Ciro, com as divisões de motores elétricos, componentes metálicos e mecânica de precisão. Contudo, a década de 1970 representa a descentralização do capital das mãos da família Eberle, o que acabou por levar a venda da empresa, em 1985, quase um século depois de seu início (1884).

1. DOS PRIMITIVOS EDIFÍCIOS EM MADEIRA ÀS SINGELAS EDIFICAÇÕES EM ALVENARIA

1.1. Contexto de Inserção - 1884-1910
Os primeiros edifícios da Eberle são construídos no início da ocupação do território pelos imigrantes. Neste contexto, o isolamento, a falta de recursos e o atendimento às necessidades primárias de subsistência condicionaram o surgimento de rudimentares e compactos edifícios, que buscavam atender apenas às questões funcionais. Eram também edifícios estreitos, condicionados pela necessidade de garantir a iluminação natural lateral nos ambientes, uma vez que não existia energia elétrica. Essa relação da largura da edificação, por sua vez, condicionou a necessidade de verticalização, resultando assim em edificações de um a dois andares, compactas e estreitas. Tecnologicamente, observa-se que a madeira era abundante na região, tornando o seu uso mais prático e mais barato. Assim, foram construídos inúmeros edifícios rústicos, estruturados e vedados em madeira. As fundações eram configuradas com o prolongamento da estrutura vertical de madeira, apoiando-se em pequeno alicerce de pedras, ou ainda, com paredes de pedra. As tábuas das paredes, no início, eram fixadas verticalmente e arrematas por mata-juntas. Posteriormente, com as serrarias, as tábuas passaram a ter medidas inglesas e encaixes tipo macho-fêmea. (Posenato, 1983) As coberturas eram geralmente de duas águas, com estrutura de madeira e beirais curtos. Inicialmente, eram usadas telhas de tábuas lascadas – scándole (Posenato, 1983 e Bertussi, 1987), sendo substituídas mais tarde por chapas de ferro galvanizado ou telhas de barro.
As janelas eram simples tampões de abrir para fora ou tampões fixados nas vergas. (Posenato, 1983) Mais tarde, observa-se a caixilharia e vidro (folhas de abrir internas ou guilhotina), fechadas por tampões. As portas seguiam o mesmo sistema construtivo das janelas, variando as dimensões, conforme os usos a que serviam. Nos casos em que era necessário vencer grandes vãos, observa-se a presença de vergas em arcos abatidos.
Esteticamente, prevalece a singeleza da arquitetura vernácula colonial italiana. A composição compacta dos edifícios explora apenas a simetria, marcando o ritmo da disposição das janelas, onde prevalecem cheios sobre vazios. Quando há mistura das texturas dos elementos de vedação, estas geralmente marcam a escala da edificação – porão em pedra e pavimento superior em madeira ou tijolo. Observa-se ainda a ausência de elementos ornamentais (torneados, entalhes e fresas), que eram comuns nos edifícios residenciais e comerciais.

Normalmente, eram autoconstruções2, sem a “interferência em qualquer nível de técnicos especializados” (Bertussi 1987, p. 127), determinando certa espontaneidade nas soluções adotadas. Por outro lado, obedecem aos parâmetros configurativos e compositivos impostos pelo Código de Posturas de Caxias do Sul3, de 1893. Condicionados por essa lei, os edifícios seguem o alinhamento da rua, com altura de 4,00 metros no térreo e 3,80 e 3,55 metros, respectivamente para primeiro e segundo pavimentos.

O primeiro edifício

A primeira edificação da Metalúrgica Abramo Eberle (figura 1a) não fugiu ao contexto e ergueu-se como uma pequena obra de madeira, muito simples e rústica. Constituía-se de um prisma retangular, com a menor largura possível para obter o melhor aproveitamento da luz do dia. Hipoteticamente, seu comprimento é de 11,40 metros (38 tábuas) e 4,00 metros de altura, conforme exigência legal.

A cobertura era em duas águas, já com telhas galvanizadas, com o escoamento voltado para a via. As esquadrias eram do tipo guilhotina, com caixilharia e vidro, e ainda, tampos internos.

A simetria das fachadas era marcada pelo ritmo da disposição das janelas, prevalecendo os cheios sobre os vazios. Neste caso específico, observa-se uma possível ampliação, marcada pela diferenciação das esquadrias e por um possível fechamento de vão de porta, indicado pela marcação das tábuas, numa altura que parece configurar uma escada de acesso ao pavilhão.4 (figura 1b)



Por autoconstruções entendem-se edificações elaboradas sem qualquer tipo de auxílio técnico, quer do ponto de vista da concepção, quer do ponto de vista da execução da obra.
CAXIAS DO SUL − Decreto n. 10, de 5 de março de 1893. Código de Posturas do Município de Santa Thereza de Caxias.
Há uma hipótese de que este volume tenha sido construído em duas etapas – três vãos em 1896 e dois vãos em 1901 (FRANCO e RAMOS, 1946)


1.2. Um contexto em transformação - 1910-1920
O contexto das simples edificações em madeira sofre uma significativa alteração a partir de 1910, com o grande impulso da Primeira Guerra Mundial. Além disso, a inauguração da estrada de ferro (1910) e a instalação da energia elétrica (1913) desempenharam importante papel no contexto da cidade.
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Tais fatos fizeram com que as características próprias da imigração italiana fossem aculturadas. Diversos edifícios foram substituídos por edificações em alvenaria, com o telhado frente-fundo, três ou quatro águas, arrematadas por platibandas, que eliminavam os beirais. O “moderno” era traduzido através do gosto eclético, como nos Bancos Pelotense e Província do Rio Grande do Sul, e através da arquitetura colonial portuguesa, como no prédio da Intendência Municipal e no Hotel Colonial (Posenato, 1983 e Costa, 2001).
Apesar da permeabilidade à influência externa, as restrições a importações e as condições econômicas vigentes condicionaram a manutenção da simplicidade compositiva dos edifícios industriais, sendo que as grandes alterações na década foram referentes aos programas de necessidades das empresas.
A diversificação da produção afetou o dimensionamento e o arranjo dos espaços. Empresas, como Abramo Eberle e Amadeu Rossi, eram organizadas em diversas seções: artigos de metal, selaria e courearia, ourivesaria e relojoaria, galvanização, funilaria, fundição, depósitos. Os diversos setores produtivos eram acomodados em ampliações, determinando composições aditivas, que ainda possuíam as características dos rústicos galpões em madeira. (Costa, 2001)

A ampliação do primeiro edifício
Coerente com o cenário de transformações urbanas e econômicas, o primeiro pavilhão da Eberle é ampliado com novas edificações (figura 2c), estando uma delas na periferia da quadra5. Em dois andares, o edifício frontal mantém o mesmo sistema tecnológico da edificação pré-existente – estrutura e vedação em madeira; cobertura em duas águas, com telhas galvanizadas e beiral, agora, arrematado por calha; aberturas em guilhotina e com tampão interno.
Compositivamente, a ampliação frontal é um prisma retangular, hipoteticamente, com 12,00 metros (40 tábuas) de comprimento, 4,00 metros de pé-direito no primeiro pavimento e 3,80 m no segundo, conforme exigência do Código de Posturas. Busca estabelecer o mesmo ritmo de cheios e vazios, porém não seguindo a mesma modulação do edifício pré-existente. A simetria não é explorada, assim como é rompida na edificação antiga, com a abertura de uma porta no vão de uma das janelas. (figura 2d)
Hipoteticamente, ao longo da década de 10, houveram outras ampliações (figura 2a), só que agora ocupando o meio da quadra, conforme cronologia apresentada pela empresa. (FRANCO e RAMOS, 1946)

Há fontes (figuras 2a e 2b) que esta ampliação ocorreu entre 1900-1906 (CALDART, 2001 e FRANCO e RAMOS, 1946). Contudo, a datação hipotética aqui é definida por comparação com demais edifícios industriais do período (COSTA, 2001).


1.3. A tentativa de se modernizar - 1920-1930
Em 1920, define-se um novo Código de Posturas (6) que estabelece novos parâmetros configurativos, compositivos e construtivos para os edifícios. Introduz afastamentos frontal e de esquina, evitando arestas vivas nas mesmas. Estabelece novas regras para altura e proporção da edificação, bem como de sacadas e balcões, não sendo mais permitido beirais sobre o logradouro público. Além disso, apresenta discussões sobre habitabilidade, através da aeração, iluminação e dimensionamento dos ambientes. No entanto, as grandes mudanças dizem respeito à tecnologia construtiva, proibindo a construção de edifícios de madeira em diversos setores da cidade.
Por estar proibido o uso da madeira, registra-se a substituição gradativa desse material por pedra e tijolo nas paredes das indústrias. Quando ocorre o uso da pedra, se dá nas fundações e se intensifica principalmente nos porões, resolvendo problemas estruturais e de umidade. Isso determinou uma tipologia muito comum no período - edificações mistas, com porão em pedra e pavimento superior em tijolo. Freqüentemente, os tijolos eram rebocados, procurando oferecer internamente higiene e, externamente, proteção contra intempéries. É o que se observa no Curtume Termignoni, na Cervejaria Indiana, em parte da Cantina Pieruccini e ainda, no Lanifício Gianella.
Também se observam algumas alterações com relação às dimensões dos ambientes. Agora, eram mais amplos para comportar grandes equipamentos importados, movidos à energia elétrica. O uso da iluminação artificial, por sua vez, também flexibilizou estas dimensões, uma vez que mantinha o edifício independente da iluminação natural lateral. Culturalmente, a cidade começava a ganhar ares de urbanidade contemporânea. É registrado o rebaixe da Praça Dante e de diversas outras ruas. Também ocorre a inserção de edifícios de significativa expressão eclética, como: a Sociedade “Principe di Napoli”, a casa do Bispado e as residências Germani e Sassi, muitos deles projetados por arquitetos-construtores italianos, como Luigi G. Valiera e Sílvio Toigo. (Costa, 2001)

CAXIAS DO SUL. Ato n. 9, 7 de dez. de 1920. Código Administrativo do Município de Caxias do Sul (em vigor: 1o de janeiro de 1921).

Primeiro edifício em alvenaria


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Na Metalúrgica Eberle segue o processo de ampliação através da adição de novos volumes, estendendo-se até a Rua “Os Dezoito do Forte” (figura 3a). Neste contexto, destaca-se uma edificação construída no meio da quadra, em 1925. Apesar de apresentar paredes e pilares em alvenaria, as tesouras e entre-pisos continuam construídos em madeira. Observa-se ainda, o aumento no dimensionamento dos espaços para comportar grandes equipamentos importados, o pé-direito alto e idêntico entre os dois pavimentos e o provável uso de iluminação artificial.
Compositivamente, o prisma apresenta uma cuidadosa modulação das aberturas, compondo o ritmo de cheios e vazios. O telhado de duas águas apresenta um curto beiral, provavelmente arrematado por cimalha, apesar de não representada no projeto. (figura 3b)
Provavelmente, no início deste período, também foi construída a casa da família Eberle e de seus sócios. Observam-se volumes ainda em madeira, com cobertura em duas águas, cujos oitões recebem ornamentação em lambrequim, distinguindo o caráter destes edifícios dos demais de uso industrial. (figura 3c)

2. PAPEL DE VANGUARDA: EDIFÍCIO JUNTO À RUA OS 18 DO FORTE
2.1. Contexto da Simplificação – década de 1930
A década de 1930 é marcada pela inserção dos grandes edifícios de cooperativas na paisagem urbana de Caxias do Sul. Esse processo inicia com a crise de 1929, quando as diversas vinícolas e madeireiras tiveram que unir esforços para garantir as condições de mercado. Entre 1929 e 1940 são fundadas dezesseis cooperativas no município. (Frizzo, 1997, p. 123)
Em sua maioria, os edifícios das cooperativas, bem como dos demais edifícios industriais da década de 30, apresentavam uma composição aditiva, com volumetria simples e pesada, onde se observa a ornamentação simplificada e o jogo de cheios e vazios de aberturas e/ou elementos verticais marcando pilares. As coberturas eram expressivas, apresentando pontos elevados e beirais retos, arrematados por calhas. São assim, por exemplo, as cantinas Aliança, Pezzi, Mosele e a Cooperativa São Vitor. Tecnologicamente, o uso da madeira se limita à estrutura da cobertura. Os elementos estruturais verticais são elaborados em tijolos e, em sua maioria, em concreto armado. O uso da pedra se limita a baldrames e ao fechamento vertical de cantinas e porões.
Essa composição é condicionada ainda pelo Código de Posturas de 1920, que estabelece a altura dos vários pavimentos da edificação e a criação do terceiro plano de fachada nas esquinas. Já a simplicidade da ornamentação não é uma imposição legal, mas uma decisão de ordem estética, do “gosto” que se consolidava na época. Observa-se que outros programas na cidade também vão apresentar características semelhantes, como os Colégios Nossa Senhora do Carmo, São José, Duque de Caxias e o Seminário Nossa Senhora Aparecida. Intensifica-se também a atuação de profissionais para a elaboração de projetos arquitetônicos. Entre os de maior projeção na época, está o construtor-licenciado Sílvio Toigo.
Abrindo paredes...
Merece destaque a ampliação da Metalúrgica Eberle, junto às Ruas Borges de Medeiros e Os 18 do Forte. (figura 4b) Apesar da composição volumétrica se relacionar com as soluções adotadas nos demais edifícios – volume pesado, com telhado marcante, o tratamento volumétrico já antecipa o vocabulário que será adotado na próxima fase – marcação horizontal das aberturas, prevalecendo o vazio sobre o cheio, ao gosto das janelas contínuas. Também, do ponto de vista construtivo, o prédio introduz algumas inovações no contexto caxiense, como o uso da estrutura modulada de concreto armado. (figuras 4c e 4d)
Há indícios de que tais inovações tenham sido introduzidas pela empresa paulista Matarazzo e Pilon Ltda., responsável pelo projeto em 1935, sendo posteriormente trabalhado e executado por Sílvio Toigo, que assume a autoria do projeto.

É relevante observar que neste período a empresa começa a ocupar lotes de quadras adjacentes, dada à diversificação das atividades da empresa. (figura 4a)


3. O EDIFÍCIO-ÍCONE DA EMPRESA
3.1. A modernidade ou quase ela... – décadas de 1940 e 1950
Nesse contexto, importa localizar o que a década de 1930 representou para o Brasil e conseqüentemente para Caxias do Sul. No âmbito nacional, foi a década de lançamento da política de modernização de Getúlio Vargas. No âmbito municipal, observa-se a intensa urbanização, com a cidade crescendo além dos limites estabelecidos pelo plano original e com o calçamento das avenidas principais.
A arquitetura buscava corresponder essa modernidade, simplificando sua linguagem e racionalizando sua técnica construtiva, mesmo sem ter clareza à qual modernidade deveria corresponder (Segawa, 1995). No final da década de 30 e ao longo da década de 40, o Art Déco é adotado como tradutor dessa modernidade, capaz de exprimir idéias novas em Caxias do Sul, assim como em boa parte do Brasil. Suas linhas geométricas são adotadas em diversos edifícios educacionais, culturais, bancários, comerciais, residenciais e ainda, em monumentos urbanos, como o do Imigrante, de 1954.
Naturalmente, esse contexto de modernidade irá influenciar a produção dos novos edifícios industriais. Volumes geometrizados, associados a superfícies curvas, para conferir certo aerodinamismo de gosto expressionista, vão surgir no espaço urbano. A simetria das fachadas é explorada ao máximo, marcada pelo acesso principal e pelo escalonamento da platibanda que arremata a cobertura. Na ordenação das fachadas, a disposição de janelas verticalizadas, a maioria do tipo vitrô basculante de ferro, estabelece um ritmo de cheios e vazios. Esse mesmo ritmo ainda é buscado pela ornamentação em baixo e alto-relevos, geralmente marcando os elementos horizontais e verticais da estrutura da edificação. A marcação da base-corpo-coroamento é muito comum, através do emprego de molduras, cores e texturas. No entanto, de modo geral, a unidade é alcançada através de composições monocromáticas, resultantes de paredes rebocadas e pintadas ou paredes revestidas com pó de mica. (Conde e Almada, 1997) Normalmente, as paredes eram erguidas em alvenaria e estruturadas em concreto. A modulação da estrutura em concreto vai garantir a planta livre, em atendimento às exigências dos programas fabris. Nas fundações, das sapatas de concreto armado, observa-se a permanência do uso de pedras basalto. Seu emprego também será observado como elemento estético da fachada, demonstrando a mescla de técnicas construtivas modernas e tradicionais.
Outra importante característica desse período é a adoção de uma política social por parte das empresas, sendo necessário investigar os seus rebatimentos sobre o programa de necessidades espaciais das fábricas. De maneira geral, se observa que a assistência das empresas aos operários ocorria fora dos limites da fábrica, não sendo dimensionados espaços no conjunto fabril para esse fim. A Eberle, no entanto, incluía em seu programa um ambulatório bem montado, restaurante, biblioteca, sala de leitura e sala de aula.

O edifício atual
Erguido em substituição aos antigos edifícios em madeira do início do século e da residência da família (figura 5), o edifício voltado para a Rua Sinimbu foi construído na década de 1940, sendo considerado marco na arquitetura caxiense (Schumacher, Costa e Barella, 2004).
Projetos disponíveis no Arquivo Histórico Municipal indicam que o projeto foi desenvolvido por um engenheiro-arquiteto de Porto Alegre. No entanto, a proposta original foi retrabalhada por Silvio Toigo em 1942, que assumiu a autoria do projeto dando-lhe uma roupagem Art Déco. No projeto, a volumetria é simples − um paralelepípedo, com a marcação da base, através de uma marquise, do corpo e do coroamento, através da platibanda. Na ordenação da fachada, observa-se a marcação, em alto-relevo e através da altura da platibanda, do acesso principal e dos dois acessos laterais, localizados nos dois extremos do edifício. A simetria do conjunto é reforçada pela disposição rítmica das janelas marcadas horizontalmente, sendo contraposta pela marcação vertical das aberturas nas saliências laterais e central. A presença de um relógio sobre a saliência central e a dos outros dois objetos nas saliências laterais destaca-se como ornamentos no conjunto. (figuras 6b e 6c)
Essa fachada também não foi executada, contudo sua lógica compositiva permaneceu a mesma numa terceira proposta, sendo apenas ressaltada a simetria do conjunto e o contraste entre as linhas verticais e horizontais. (figura 6d) Nota-se o acréscimo de um andar nas saliências laterais e central e ainda uma torre com relógio, provavelmente inspirada na torre do relógio do edifício da Central do Brasil do Rio de Janeiro (1937). A composição das aberturas permanece a mesma, exceto as grandes janelas verticais das saliências laterais que são substituídas por janelas padronizadas. Bem ao gosto Art Déco, o revestimento da base do edifício com granito preto e o trabalho metálico nas portas de acesso conferem nobreza ao prédio.
O edifício foi edificado em etapas, na década de 40, foi construída apenas a metade, definida pelo seu eixo de simetria e sem a torre. (figura 6f) Em 1957, já se registra a fachada concluída. Posteriormente, percebe-se que foi construído um sexto pavimento em toda a extensão da edificação, perdendo muito o contraste entre a horizontalidade e a verticalidade. Além disso, na construção do sexto pavimento não foi usada a mesma composição de aberturas, em prejuízo à unidade do conjunto. (figuras 6e e 6g) Observa-se que a simetria da fachada não corresponde a uma simetria na disposição dos ambientes nas plantas, contudo há uma subordinação dos arranjos funcionais à modulação da grelha estrutural. O dimensionamento dos ambientes segue o esqueleto estrutural em concreto armado, modulado longitudinalmente através de vigas dispostas de 2 em 2m e pilares de 4 em 4 m. No sentido transversal, a modulação dos pilares é de 5,5 em 5,5 m. (figura 6c)

Esse edifício, acrescido dos edifícios da Rua Borges de Medeiros e Os 18 do Forte, construídos na década de 30, ocupam quase uma quadra inteira na área central de Caxias do Sul, ao lado da praça principal. Deve-se considerar ainda que, no interior da quadra, também existem outras edificações que abrigavam a diversificada produção, abrangendo mais de 15.000 artigos diferentes.


CONCLUSÃO
O abandono de grandes estruturas industriais nas áreas urbanas centrais das cidades tem sido tema de vários debates. A cidade, como organismo vivo e dinâmico, não comporta o ônus da falta de uso destas edificações. No entanto, há que se ter cuidado para garantir que bens, considerados patrimoniais, não se tornem vítimas de indiscriminada e acelerada especulação.
Neste contexto, inicialmente, parece ser importante discutir critérios para a atribuição de valor patrimonial aos edifícios industriais, indo além de suas características arquitetônicas específicas. Torna-se necessário “(...) olhar as relações antropológicas de apropriação destes bens no espaço e no tempo, para identificar seu valor”. (VILLAC apud CHOAY 2006). Este olhar sobre as relações com os artefatos construídos poderá também atribuir o valor patrimonial de um bem, estando diretamente relacionado com a ligação afetiva da população com os mesmos. Assim, mais do que preservar os edifícios, é importante também garantir a manutenção dos “símbolos” das cidades, nos quais a comunidade reconhece sua identidade.
A Metalúrgica Eberle, no contexto caxiense, é certamente reconhecida como imagem simbólica da identidade da cidade de Caxias do Sul. A análise da evolução tipológica dos edifícios pode evidenciar o importante papel que ela desempenhou, tanto economicamente quanto socialmente, na formação e na afirmação identitária do imigrante italiano. A empresa representou a ascensão destes imigrantes, sendo a sua arquitetura capaz de refletir materialmente o processo econômico e social de ocupação e industrialização da cidade, através da evolução das técnicas construtivas, da linguagem estética adotada em cada período, além dos constantes avanços nos programas de necessidades.
Diante disto, considera-se que o conjunto pode efetivamente ser considerado de valor patrimonial para Caxias do Sul, como confere o próprio processo de tombamento público municipal, exigindo cuidados em qualquer proposta de refuncionalização. Aqui, explicita-se que a refuncionalização, dado ao porte do complexo, poderá garantir a própria sobrevivência física e simbólica deste patrimônio. Contudo, para garantir que este processo de absorção de novos usos não descaracterize o conjunto, será importante priorizar as intervenções em edifícios marcos desta evolução.
Das sucessivas construções e substituições, o resultado foi um complexo fabril fragmentado e de difícil compreensão. Em vários dos edifícios de meio de quadra, não foi possível precisar a data de construção. No entanto, três principais edifícios desta evolução permanecem ao longo do tempo.
O primeiro é uma edificação construída em 1925, por ser um marco substituição dos edifícios primitivos em madeira por uma edificação em alvenaria, mantendo as tesouras e entre pisos em madeira. Retrata a mudança ocorrida no contexto caxiense, por imposição Código de Posturas de 1920.
Já a segunda edificação, foi considerada de vanguarda no contexto da cidade, não pela composição volumétrica, mas pelo sistema construtivo – com o uso de estrutura modulada de concreto armado, possibilitando a marcação horizontal das aberturas, com o predomínio do vazio sobre o cheio.
Por fim, o edifício ícone foi construído para substituir todas as edificações em madeira. Foi considerado um marco na arquitetura caxiense, por antecipar a “modernidade” como um “pequeno arranha-céu”. Tem destaque a torre central que abriga um relógio, cujas badaladas tornou-se um marco na história da cidade.
As duas últimas edificações são reconhecidas como símbolos pela população, caráter este reforçado certamente pela relação direta das mesmas com o espaço público, ao passo que as edificações constantes no interior da quadra podem não estar presentes no ideário coletivo. Para que permaneçam assim, é imprescindível que a discussão sobre a refuncionalização não se limite ao valor econômico e ao valor de uso, assegurando que este patrimônio permaneça como representante de parte da memória histórica e cultural da cidade, quase sempre relegada a um segundo plano.

REFERÊNCIAS BIBIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, D. P. Documentário histórico do município de Caxias do Sul (1875- 1950). São Leopoldo: Artegráfica, 1950.
ARGAN, G. C. Tipologia. Summarios. Buenos Aires: Summarios, n. 79, jul. 1984.
BERTUSSI, P. I. Elementos da arquitetura da imigração italiana. In: WEIMER, G. (Org.). A arquitetura no Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
CAXIAS DO SUL − Decreto n. 10, de 5 de março de 1893. Código de Posturas do Município de Santa Thereza de Caxias.
CAXIAS DO SUL. Ato n. 9, 7 de dez. de 1920. Código Administrativo do Município de Caxias do Sul (em vigor: 1o de janeiro de 1921).
CALDART, A. Inventário e cadastro: amostragem de levantamento da Metalúrgica Eberle. Caxias do Sul: UCS - Curso de Arquitetura e Urbanismo, 2001. (monografia de Laboratório de Arquitetura e Urbanismo)
CALDART, A. Diretrizes para projeto de intervenção na Metalúrgica Eberle. Caxias do Sul: UCS - Curso de Arquitetura e Urbanismo, 2002. (monografia de Trabalho Final de Graduação)
CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. 3. ed. São Paulo: UNESP, 2006.
CONDE, L. P. F. e ALMADA, M. Panorama do Art-Déco na arquitetura e no urbanismo do Rio de Janeiro. In: Guia da arquitetura art déco no Rio de Janeiro/ Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Urbanismo. Rio de Janeiro: Index, 1997.
COSTA, A. E. A Evolução do Edifício Industrial em Caxias do Sul: 1800- 1950. Porto Alegre: UFRGS - PROPAR, 2001. (Dissertação de mestrado)
FRANCO, A. e RAMOS, M. O Milagre da Montanha. Obra Comemorativa do Cinqüentenário da Metalúrgica Abramo Eberle Ltda: Franco editores. São Paulo, 1946.
FRIZZO, L. M. Industrialização de Caxias do Sul: da gênese às exportações. São Paulo: USP – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1997. Tese de Doutorado em Ciências.
POSENATO, J. Arquitetura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: EDUCS, 1983.
SCHUMACHER, E.; COSTA, A. E.; BARELLA, S. M. F. Guia Didático da Arquitetura de Caxias do Sul. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.
SEGAWA, H. Modernidade Pragmática – uma arquitetura dos anos 1920/1940 fora dos manuais. Revista Projeto. São Paulo: Editora Projeto, n. 191, nov. 1995.
MUSEU E ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL. “Metais, máquinas e homens” – Fragmentos de uma paisagem. Caxias do Sul, 1996 (Catálogo de exposição fotográfica).
MUSEU E ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL. “Metal das horas” – Eberle – Cem anos de realizações. Caxias do Sul, 1996.

Para ver as figuras indicadas no artigo, abra a aba Memória Visual.

sexta-feira, 1 de março de 2013

As vitrines da Eberle


Terezinha Buchebuan*

Quando escuto a palavra Eberle, a primeira imagem que me vem à mente é a das antigas vitrines. São memórias de infância. Sim, sou do tempo em que as vitrines da Eberle eram atração no centro de Caxias! O que me encantava? Certamente a diversidade, era um universo de informações e produtos para quem estava começando a descobrir o mundo. Lembro das incursões, em família, pelo centro da cidade: colocar a melhor roupa, ir para a missa na Catedral, brincar e correr com meus irmãos pela praça, enquanto meus pais sentados nos cuidavam. Próximo da hora de ir embora, comer pipocas, dois saquinhos para dividir em três crianças, atos e lições simples que nos uniram e nos ensinaram grandes valores.
No caminho para pegar o transporte coletivo, antigo Expresso Caxiense – o “transporte carinhoso”, tínhamos que passar em frente às vitrines da Eberle. Era um mundo à parte, quase incompreensível e inatingível para mim: os motores muito complicados; os artigos sacros que evocavam respeito; os artigos de montaria e as facas com lindos desenhos de cabeças de cavalo; os talheres que brilhavam tanto e eram tão chiques, expostos em caixas de madeira com veludo vermelho; os botões que víamos em nossas roupas e podíamos ler a marca Eberle por trás (pelo menos uma coisa da empresa a gente tinha); e o prédio, esse sim, aos olhos da criança se mostrava grandioso. Não bastasse isso, as vitrines eram concebidas com zelo e não se resumiam a um amontoado de produtos. A sequência, que se apresentava quase como quadros conforme se caminhava pelas calçadas com desenhos de engrenagem, iam dos motores aos artigos de prata como num ápice.
Muitos anos mais tarde, depois de ter me tornado arquiteta, tive o prazer de conhecer a Eberle, desta vez por dentro. A prof. Ana Elísia da Costa e eu, integrantes da equipe da arq. Sandra Favaro Barella, fomos incumbidas de estudar a evolução cronológica e tipológica das edificações com vistas a subsidiar o projeto de refuncionalização para implantação de uma instituição de ensino. Sim, foi um momento lindo. Inclusive vimos a réplica da primeira edificação bem de pertinho e revelo: ela é muito pequena! No entanto, o estado de degradação das edificações trouxe apreensões: as coberturas com muitas infiltrações, as madeiras apodrecendo, os ricos escritórios destruídos, enfim, uma lástima.
O estudo acabou resultando num artigo[1] que destacou, além da evolução das edificações ao longo do tempo, a importância que elas tiveram como vanguarda, transformando-se em referência arquitetônica e traduzindo as aspirações de modernidade da empresa e da cidade.
Na conclusão deste estudo foi registrado o abandono das estruturas industriais nos centros urbanos, destacando-se que as cidades não comportam o ônus da falta de uso desses espaços, mas não podem prescindir de seu valor patrimonial, que estão além de suas características arquitetônicas. Por isso, a discussão sobre os projetos de refuncionalização não podem se limitar ao valor econômico e ao valor de uso, para que seja assegurado que este patrimônio permaneça como representante de parte da memória histórica e cultural das cidades, quase sempre relegadas a um segundo plano. Afinal, o melhor guardião do bem cultural é a conscientização da própria comunidade pela apropriação simbólica que faz dessas arquiteturas. Os novos usos pressupõem uma mudança de significado da obra, mas ela não perde sua marca de referência ao passado. Conforme registrado no artigo, é necessário “(...) olhar as relações antropológicas de apropriação destes bens no espaço e no tempo, para identificar seus valores” (VILLAC, apud Choay, 2006). Ou seja, reconhecer as relações afetivas da população com seus bens é essencial para que a cidade, mais do preservar edifícios, possa manter seus símbolos para que as pessoas possam reconhecer neles, a sua identidade. Tempo e espaço são âncoras que compõe a memória. Quanto mais o tempo passa, mais sentido e mais ligações afetivas são evidenciadas em relação à memória da Eberle. O espaço já não se mostra tão grandioso quanto no olhar de criança, mas se torna cada vez mais magnífico, diante da importância que se reveste para a memória da cidade. Certamente os prédios da Eberle se constituem num dos grandes ícones da identidade ligada ao trabalho, que é uma marca do povo caxiense, num primeiro momento dos imigrantes italianos e hoje, dos muitos migrantes que aqui chegam para vencer nesta terra.
Infelizmente o projeto de refuncionalização não foi implantado na íntegra e as notícias de venda da edificação e seu futuro uso preocupam, mas se percebe uma mobilização em torno dessa memória e do seu registro, agora não só material como também imaterial. Nos trabalhos de preservação há que se ter persistência, pois os resultados são colhidos há longo prazo, mas eles chegam e são gratificantes, como o que vejo nos textos desse blog, concebido pelos diretores e alunos da Pós-graduação em Bens Culturais e também em outras mobilizações pelo patrimônio caxiense nas redes sociais.
É compensador perceber, como professora visitante deste curso, que os alunos transcendem a dimensão tangível dos bens culturais, tão cara aos arquitetos, para chegar a algo que esses profissionais não podem deixar de considerar nas intervenções: o intangível, aquilo que dá sentido às coisas, à arquitetura e à própria vida. Afinal, como já pregava Aristóteles: “As cidades deveriam ser construídas para proteger seus habitantes e ao mesmo tempo fazê-los felizes.” Certamente o olhar desta arquiteta e professora não seria o mesmo se não conservasse na lembrança, as relações de afeto com os lugares e edifícios de sua cidade, a exemplo das vitrines da Eberle.
*Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e professora visitante do curso de Pós-Graduação em Bens Culturais da SAPIENS/FAI.



[1] COSTA, Ana Elísia da; BUCHEBUAN, Terezinha. Evolução tipológica da Metalúrgica Eberle: subsídios para projeto de refuncionalização. In: V Coloquio Latinoamericano e Internacional sobre Rescate Y Preservación del Patrimonio Industrial. Buenos Aires, 18 a 20 de setembro de 2007. Buenos Aires: Cedodal, 2007. ISBN: 978-987-1033-24-9. [Mesa I - Intervenciones De Conservación, Recuperación y Refuncionalización del Patrimonio Industrial, texto 044].

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A expressão do trabalho caxiense


Aline Marques de Freitas


Há 116 anos, Dr. Júlio de Castilhos, presidente do estado do Rio Grande do Sul, visitou a então Vila de Caxias e admirado pelo progresso apresentado em pouco mais de 20 anos de sua existência, definiu-a como “A Pérola das Colônias”. Sim, em 1897, passados 22 anos do início da colonização italiana no Rio Grande do Sul, Caxias se destacava pela sua urbanização eminente, a pavimentação das ruas, a organização das praças, além disso, hotéis, cafés, casas de negócios de secos e molhados, edificações públicas, e pequenas indústrias prosperavam. Já figurava nos jornais da época a preocupação com a construção de estradas para escoamento da produção industrial. A que se deveu todo esse progresso destacado na frase de Júlio de Castilhos? Essa pergunta é retórica para os conterrâneos. É de senso comum que foi o trabalho duro dos colonos que aqui chegaram o responsável pelo crescimento econômico.

Surpreende ao desavisado que uma colônia pensada para vocação agrícola acaba apresentando uma considerável urbanização em pouco tempo. O que levou a isso? O produto agrícola precisa ser vendido, e o comércio ocorre na cidade, sim, mas apenas isso não explica. É preciso prestar atenção no trabalho que o colono traz consigo na bagagem, e como ele aplica esse conhecimento aqui. Muitos do que aqui chegam pretendiam morar na vila, mas grande parte seguiu para as colônias. Aqueles que vão para a colônia e se dedicam ao plantio da uva, logo se uniam criando cooperativas vitivinícolas. Queriam fazer do seu trabalho um negócio.

 É preciso observar que havia em Caxias uma

estreita relação entre produção e comércio, não existia ainda uma separação clara entre produção e venda dos produtos. Os sapateiros, mestres no conserto e na produção de calçados, ainda vendiam seus sapatos. As selarias produziam e vendiam os couros, os fabricantes de móveis produziam e vendiam cadeiras. A casa funerária fabricava os caixões e vendia aos interessados. Era feita diretamente ao consumidor, o que não excluía as vendas no atacado. Em 1915 a existência de vários estabelecimentos industriais garantia grande diversidade na produção. Havia empresas modernas como a metalúrgica e as tradicionais de consumo.” (GIRON; BERGAMASCHI, 2001. p. 106)

A indústria nasce ligada ao comércio, da mesma forma que é possível afirmar que o comércio nasce ligado à produção manufatureira. E, pelo menos até meados de 1920, a grande maioria das fábricas está estreitamente ligada à agricultura.

Nesse contexto a história da metalúrgica Eberle é a história do crescimento da cidade e é a história dos cidadãos caxienses.  A metalúrgica nasce da pequena funilaria pertencente à Elisa Bandeira. Elisa emigra da Itália com seu marido, José Eberle, que trabalhara na Itália em fábricas de funilaria e alambiques e trouxe consigo alambiques e ferramentas para abrir um pequeno negócio. Quando chegam aqui, José compra uma colônia e passa a se dedicar à produção agrícola, e sua mulher compra uma funilaria e abre seu negócio na vila. Gigia, como era conhecida Elisa, produz e vende seus artigos de funilaria, de 1886 a 1896. Seu filho Abramo, assume o negócio e em 1904 a funilaria passa a se chamar Abramo Eberle & Cia. Abramo, que fica no comando até sua morte em 1945, diversifica o leque fabril, produzindo de talheres a artigos sacros e até motores (devido à dificuldade de importar durante a Segunda Guerra Mundial). É nos tempos de Abramo que a cidade incorpora os valores da indústria: se o tempo é o tempo da fábrica, em Caxias o tempo é marcado pelo sino do Abramo. Assim também a metalúrgica se torna exemplo a ser seguido devido à sua fama, tanto pela qualidade de seus produtos quanto pelo tratamento dado a seus operários.

Historicamente, a identidade do povo caxiense foi construída ligada à ideia de que “aqui se trabalha”, e que é devido a esse trabalho que se tem progresso econômico. E se essa identidade pode de alguma forma ser materializada, ela o é, na metalúrgica Eberle “porque aqui vive-se do trabalho, e melhor que Eberle ninguém para expressar o trabalho e a vida verdadeira” (jornal O Momento, 18 de maio de 1946). 

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Para Napoleão nada era impossível


 Leonor   Bassani*

O Sr. Luiz Misleri era nosso chefe, sabia  como  impor  sua    autoridade  e nós,  os novatos,  quando  chamados  a sua mesa, até  tremíamos de medo. Lá vinha um severo sermão coletivo (nunca especificava nomes). Quase sempre era para nos cobrar trabalhos perfeitos, num tempo exíguo. Timidamente  respondíamos  que  seria difícil acabar dentro desse prazo, mas  iríamos fazer o possível. Numa certa manhã, empurrou sua confortável cadeira com braçadeiras e em pé, olhando nos olhos de cada um, sentenciou com seu acentuado sotaque italiano: - Façam como Napoleão,  para quem nada era impossível.     

Nesses sermões citava  sempre, grandes nomes da história em alguma situação relevante, e nos instigava a seguir o exemplo. O imperador Bonaparte era o preferido. Se fosse hoje, quando se referisse a ele concordaria que Napoleão foi um estrategista genial, entre os melhores do mundo, mas questionaria, e Waterloo? e a Campanha Russa? Mas naquele início,  apenas  voltava  para minha Remington, a cabeça rodando como  um pião.   Afinal,  quem era Napoleão?

Queria muito conhecer essas pessoas  de quem seu  Misleri  falava. Conversando  com colegas  descobri um tesouro, a biblioteca  da empresa! De onde podíamos retirar  os livros que quiséssemos.  Voltei a estudar à noite, e nos fins de semana e feriados sempre reservava um tempo para as leituras. Penso que  durante os anos  que lá permaneci,   devo ter lido  todos os livros, do meu interesse, que  encontrei. E eram tantos... Mas os sermões, esses, vez ou  outra continuavam. Nos  perguntávamos a razão, de apesar das reclamações, ele  nunca ter dispensado ninguém. Essa resposta só tivemos  quando    foi  promovido para a gerência da  Fábrica Dois.  
                                                       
Foi aí  que veio a grande surpresa. Antes de ir, reuniu todo o grupo. Agradeceu, elogiou... Ao final pediu que ficassem os menores. Nos chamou como sempre chamava, de meninos e meninas, fez uma pausa...  Pensamos: o que virá agora?  Então foi falando do que nunca imagináramos ouvir “ Vou  deixá-los, mas  quero que saibam, fui severo com vocês porque considero a todos como meus filhos. Já estão mais crescidos, podem me compreender. Nunca fui violento, nem mesmo agressivo, apenas precisava ser enérgico”Nos olhamos sem entender bem o que isso significava. Ele percebeu, sorriu e visivelmente comovido acrescentou: Que os grandes da história, só foram grandes porque adotaram princípios de disciplina,  responsabilidade e  comprometimento de  sempre  fazer o melhor.                                                                                

Foi assim que entendi. Aquele prédio da Metalúrgica Eberle,  na Sinimbu,era também a nossa casa. Fomos  adotados muito jovens, e  ali nos foi ensinado  a Honra do Trabalho na vida de cada um.

* Secretária, depois RP 
05/02/2013                                                                                                                                                                                                                          

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Documentário A Honra do Trabalho: a importância do tombamento da Metalúrgica e a mobilização da sociedade*

                                 Cristina Nora Calcagnotto


Primeira lamparina fabricada por Abramo Eberle em sua funilaria.
Foto: Acervo Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami

Esta é uma história que iniciou em 1997 e que teve uma movimentação tímida por quase dez anos, na dúvida sobre realizar ou não o tombamento da Metalúrgica Eberle.
Depois de seis anos de seu tombamento, sinais de ações que podem desencadear uma nova fase, com a revitalização do prédio e sua utilização para novas atividades e melhor aproveitamento para a preservação deste patrimônio material e imaterial de Caxias do Sul.
O pedido de tombamento surgiu do poder legislativo, por sugestão do vereador Francisco Spiandorello, em 1997. Em 1998, o COMPHAC (Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Caxias do Sul), no uso de suas atribuições, emitiu o parecer encaminhando sugestão favorável ao tombamento ao Prefeito Municipal, o que não aconteceu. Em 2 de julho de 2003, o COMPHAC retomou o processo e se manifestou dizendo que a iniciativa tinha que ser do executivo, encaminhando novamente ao Senhor Prefeito. Neste momento, o tombamento também não ocorreu.
Em 27 de julho de 2005, o então Secretário da Cultura e presidente da Comissão Específica e Permanente para Proteção do Patrimônio Histórico e Cultural José Clemente Pozenato, retomou o assunto e reabriu o processo para que fosse efetivado o tombamento do prédio da Metalúrgica Abamo Eberle, porém, o INSS, que tinha penhorado o prédio, manifestou-se contrário ao tombamento alegando prejuízo no valor do imóvel e a não competência do município em afetar bens do estado ou da união.
Somente em 06 de janeiro de 2006, é declarado definitivamente tombado o prédio de propriedade de Monte Magré S/A, pelos seguintes motivos: representação do real significado do processo de industrialização identificando a comunidade caxiense em âmbito regional, estadual, nacional e internacional; localização no contexto urbano como referência de um processo histórico; representação da imagem simbólica que se pretende preservar dos complexos industriais da cidade; a casinha e o relógio da Eberle como elementos indissociáveis da metalúrgica; popularização do conceito do seu significado; e representação do perfil histórico cultural de Caxias do Sul, como um povo que pensa em trabalho.
Vindos de grandes levas de imigrantes, no final do século XIX, os Eberle partiram de Monte Magré, Vicenza, Itália, em 1884, para dedicarem-se à agricultura na Colônia de Caxias. Porém, como não desejavam depender somente da terra, adquiriram em 1886, de Francisco Rossi, uma pequena funilaria que passou a ser conduzida pela matriarca da família, Luigia Eberle. No pequeno prédio de madeira (cuja réplica encontra-se hoje no alto do prédio principal), localizado a poucos metros da praça Dante Alighieri, a senhora Luigia forjou sua identidade como Gigia Bandera (Luiza Funileira) e ensinou Abramo Eberle o ofício de bander.
Dez anos após, em 1896, Abramo, segundo dos filhos de Giuseppe e Luigia, adquiriu da família a funilaria e passou a fabricar produtos identificados com as necessidades das pessoas, impulsionando seus negócios e aumentando a dimensão de sua produtividade no comércio e na indústria local.
Na rudimentar oficina, o cobre, a folha de flandres, a lata e o latão eram transformados em lamparinas, pulverizadores, funis, canecas, baldes, conchas, alambiques, e na medida, recipiente utilizado para medir vinho, presente em todas as casas dos colonos na região.
Em 1907, com o início da fabricação de artigos de montaria, é dado um largo passo e em 1918, com o início da fabricação de talheres, seguindo com peças de cutelaria, pertences de mesa e artigos sacros, a empresa viu-se na contingência de modernizar-se e expandir-se ainda mais. Em 1920, possuía 250 funcionários e ocupava diversas construções no quarteirão em que estava instalada.
Na década de 1930, foi construído o pavilhão sobre as Ruas Os Dezoito do Forte e Borges de Medeiros, com projeto do construtor e arquiteto licenciado Silvio Toigo. Na década seguinte, inaugurou-se o grande edifício de cinco andares com fachada para a Rua Sinimbu. Para esta edificação, houve um projeto inicial elaborado por engenheiro e arquiteto de Porto Alegre, em estilo eclético. Depois, com o mesmo compositivo, Silvio Toigo assumiu a autoria e deu-lhe uma roupagem art-decó.
Ao longo do tempo, o edifício foi submetido a diversos reparos e adaptações, eliminando-se algumas de suas características mais marcantes. A maior delas foi o acréscimo de um sexto andar, que eliminou o contraste entre as linhas verticais e horizontais. O torreão, com o relógio é a outra modificação do projeto ocorrida na década seguinte. Às vinte e quatro horas do dia 31 de dezembro de 1955, a população caxiense teve sua atenção voltada para o novo elemento que marcaria, a partir daquele instante, as horas da cidade que perdia seu ar provinciano e iniciava sua caminhada para tornar-se uma metrópole regional.
Com os novos tempos, novas formas de expansão fizeram-se necessárias. O filho de Abramo, engenheiro José Venzon Eberle, substituiu o pai, falecido ainda em 1945, na condução da empresa. Suas ações deram ênfase ao trabalho técnico com a fabricação de motores elétricos na nova fábrica construída à Rua Plácido de Castro. Outras unidades seguiram-se consolidando o nome da empresa no mercado nacional e internacional.
Os anos 70 foram marcados por muitas mudanças e novas fábricas em São Ciro. Foi uma década de crescimento econômico e a Eberle expandiu sua produção, mas os descendentes diretos de Abramo Eberle não puderam conservar a direção da empresa.  Neste momento, em 1985, ela foi adquirida pelo Grupo ZIVI.
É uma importante história e, assim como o palacete foi restaurado e está em pleno uso com nova atividade, espera-se avanços e providências para o prédio da quadra central, pois, ao mesmo tempo que se fala e se esta movimentação em torno do patrimônio material do legado da Eberle, há um movimento para preservar também o patrimônio imaterial gerado por ela.
Pesquisas, entrevistas, depoimentos, gravações, filmagens estão em andamento para registrar aquilo que se chamaconhecimento produzido pela Eberle”, o que se pretende com o projeto em tela.
“A Honra do Trabalho” é um documentário audiovisual que pretende resgatar memórias do trabalho realizado dentro da Metalúrgica, que alavancou o desenvolvimento da economia e da indústria caxiense. É financiado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Caxias do Sul e conta com o apoio cultural da Racon Consórcios.
Visa a preservação da memória da metalúrgica e do prédio onde foram forjados uma imensa variedade de produtos, mas principalmente, a preservação da memória do ofício da Eberle, do trabalho, do labor, que foi quem deu o destino para inúmeras famílias caxienses, bem como a vocação industrial para o município.
É a nossa contribuição. É uma pequena mobilização dentre outras que se formam na cidade com um único e uníssono objetivo: a garantia da preservação não só desta história, mas sim do conjunto da história de Caxias do Sul.
É a nossa contribuição para que o patrimônio imaterial do trabalho da Metalúrgica Eberle seja (re)conhecida também pelas próximas gerações.

* Texto produzido a partir de fragmentos do artigo de opinião sobre o Tombamento da Metalúrgica Abramo Eberle produzido para a disciplina de Documentação Patrimonial, do projeto do documentário e de opinião pessoal da autora.